Sylvio Back, cineasta, poeta, roteirista e escritor

O SUSSURRO

Ainda que o título deste breve memorial sobre e com o belo e inspirado escritor, dramaturgo, roteirista e jornalista, Manoel Carlos Karam  (1947-2007), seja um tanto, digamos, sibilino, é uma das mais saborosas lembranças que guardo dos dois meses que trabalhamos lado a lado, ele como assistente de direção, na realização do longa-metragem, “Aleluia, Gretchen”, de cujo roteiro, publicado pela Editora Imago (158 págs., Rio de Janeiro/RJ, 2006), é um dos inestimáveis coautores.

Filmado em Curitiba (PR) e Blumenau (SC), entre outubro/novembro de 1975, e finalizado em São Paulo, o filme estreou nacionalmente no segundo semestre de 1976, depois de provocar gigantesca polêmica nos festivais de Brasília e Gramado, que o catapultou na mídia e abriu o leque de seus mais de vinte prêmios nacionais e internacionais.

Nossa parceria, no entanto, remonta a meses anteriores quando, juntamente, com o jornalista e escritor, Oscar Milton Volpini, que assinara comigo e com o também escritor, Nelson Padrella, o roteiro de “Lance Maior” (1968), discutíamos, entusiasmados, a diretriz e o conteúdo do argumento e a futura estrutura episódica de “Aleluia, Gretchen”, e desde já, lógico, os contornos anímicos de seus futuros personagens.

Depois de cada, digamos, “brainstorm”, onde avalancha de situações e diálogos se misturavam ao meu histórico familiar (ideário fundador do filme), filho que sou de imigrantes fugidos do nazismo, a pertinentes elucubrações e sugestões vindas, justamente, de Karam. Ele, atilado autor e diretor de um original teatro antes do esculacho  do que do absurdo (abomino o epíteto recorrente de que seria o “nosso” Becket ou o “nosso” Ionesco: nada a ver e a haver, Karam é melhor!) – cada um ficava com “lições de casa” para serem escrutinadas no próximo encontro, cabendo a mim a redação final.

Sulinidade

Como um filme é sempre obra coletiva, embora sua assinatura, para o bem e para o mal, seja do diretor, o aporte de “insighs” e falas afloradas em “Aleluia, Gretchen” são inextricáveis corpo, alma e idiossincrasias de Karam, Volpini e Back.

Inclusive, naquilo que o filme melhor extravasa (peço vênia ao leitor pela autorreferência), que é a sua “sulinidade”, se a palavra couber, e cabe!, criatura que é de criadores naturais que somos do Extremo Sul, diria até, de uma brasilidade telúrica até então inédita no cinema nacional.

Sem nenhuma premeditação, nessa o roteiro se distanciava, felizmente, de todo nosso cabedal cinéfilo (os três, contumazes frequentadores da encantadora Cinelândia araucária; eu próprio que dez anos antes mantinha crítica de cinema na mídia local), sobre a temática intensa e extensivamente tão bem explorada por filmes alemães, poloneses, tchecos, italianos e, sim, por Hollywood, ali com viés menos realista, mais edulcorado.

Aliás, esse espelho às avessas das telas que nos haviam conflagrado como espectadores, é um detalhe nada desprezível que fui sacando ao rever o filme tantas e quantas vezes (como se sabe, ainda que muitos o neguem, é o diretor quem mais revê seu rebento!), acaso que acabou imprimindo a “Aleluia, Gretchen” um visual estético e um torque ético que na sequência o credenciaram de imediato a festivais tanto no Brasil , quanto no exterior, como Chicago (EUA), Berlim e Mannheim (ambos na Alemanha).  

Pensando em alemão

Ainda a propósito do imaginário resultante do filme, recordo-me nitidamente de um dos chamados “krenzen” (café das cinco regado à confeitaria germânica), que minha mãe, dona Else, promovia com contemporâneos de sua evasão de Hitler nos anos 1930. Depois de eu submeter à leitura de dois casais amigos dela um primeiro tratamento do roteiro, levei ao ágape o que Karam, Volpini e eu (na verdade, era mais pessoal a angústia, temente que o filme traísse sua vocação de acerto de contas com minhas origens étnicas!), não conseguíamos deixar claro na mente: afinal, são refugiados alemães que chegam a uma cidade do sul do Brasil e, assim, sem outra, põem-se a falar português! Ou faríamos os atores se expressar naquele folclórico pasticho de idiomas usado por nós pra zoar de estrangeiro?

Para minha absoluta surpresa, um dos consultados, homem estudado, conforme dona Else, que também lera o roteiro, me encarou com brilhantes olhinhos de safira, e fuzilou: “Zylvio” (o esse em alemão se pronuncia como zê; daí meine Mutter é Elze!) –, acredite, li seu roteiro pensando que estivesse escrito em alemão, então, praquê fazer o elenco se comunicar, inicialmente, em algo assim paródico, tipo um “portugermânico”(!) ou, e no correr da estória, acabariam por falar português castiço?”

E arrematou, com anuência de todos: “O roteiro e os diálogos transmitem o sentimento da dor e da nostalgia de quem, como nós, é transplantado à força para um país estranho, algo que eu nunca vi nem constatei assistindo a filme europeu, ou mesmo, feito na Alemanha”.

Isso soou duplamente em nossa consciência: como senha e palavra de ordem, o que deu asas a que investíssemos em novas vertentes que fizessem sentido para o enredo, a começar pela naturalidade das conversas do filme, liberando assim todo imaginário até então represado como se o português não fosse adimplente ao tema. Era, desde o seu nascedouro!

Acepipe anedótico

Aí fomos fundo, sem medo de que a consecução editorial do roteiro fugisse de suas atenções e intenções primevas: denunciar o quanto ideais autoritários rejuvenescem com o passar dos homens, circunstâncias, tempos e regimes, metáfora que tanto assombrou a crítica quanto o público em plena ditadura do general Geisel; nem se preocupe, leitor, não vou dar aqui uma de “spoiler”, mas, sugiro que veja ou reveja “Aleluia, Gretchen” para conferir se o filme dá conta ou não de suas ambições morais!

Gaúcho, Volpini; “catarinas”, Karam e Back, jornalistas em tempo integral, cada um à sua época, éramos assíduos leitores e ouvintes de notícias, com sua respectiva mitologia, já tornadas recorrentes e absorvidas pela imprensa local e nacional. A sorrateira presença de ex-oficiais nazistas homiziados no sul do Brasil. Era a materialização de um inconsciente coletivo que se remetia aos anos 1950, quando se dizia que pencas de nazistas seriam os próximos neo hóspedes dos regimes ditatoriais no Paraguai (Stroessner) e na Argentina (Peron), não sem antes fazer uma providencial escala no Paraná. Com isso procurando uma invisibilidade e a devida precaução de que não estariam no radar dos caçadores de criminosos de guerra, com paz e sossego no porto de chegada. Portanto, que mais extraordinário acepipe anedótico do que esse para criadores como nós, hein?

Ensaios

Tristemente usual em pífios textos biográficos e críticos da mídia cultural (onde se torce o nariz para autor de argumentos e roteiros como se criação menor fosse; há mais roteiristas de cinema, TV e de filmes de animação ativos no país do que escritores!) é a omissão do nome de Manuel Carlos Karam como coroteirista de “Aleluia, Gretchen”. E, igualmente, como meu assistente na direção, fato explícito nos letreiros do longa. O convite para essa função essencial numa filmagem ainda ocorrera durante os estudos e na escritura do roteiro, principalmente, em razão de sua atividade de diretor de teatro, com vários espetáculos estreados (ao todo, em torno de vinte nos anos 1970) e de cujo sucesso sempre compartilhava como espectador.

Admirador daquelas suas encenações labirínticas, (novidade absoluta em Curitiba!), atravessadas de surpresas, humor e iconoclastia, e com um inequívoco substrato kafkiano, muitas vezes de apreensão cifrada, o que cheguei a comentar com ele em tom de crítica. Pretendia juntar as duas expertises de Karam, o de encenador, pois dirigia com rigor e precisão, e a de dramaturgo, nesse projeto fílmico que já se anunciava complexo dado seu ineditismo temático e pegada de linguagem e cujo “plot” eu vinha amadurecendo há anos.

Delicada missão

É comum as pessoas ignorarem o papel de um assistente de direção numa filmagem. Claro, depende da personalidade de cada realizador. De minha parte, com Karam, íntimo do roteiro, confiei-lhe a delicada missão, além de analisarmos como distribuir os personagens em cena, de repassar o texto com os atores e atrizes, bem como checar se cada um havia entendido o que eu dissera nos ensaios prévios às filmagens. Com um detalhe que me persegue desde “Lance Maior”: não gosto de ensaiar, prefiro creditar aos intérpretes o ritmo e a inspiração da hora, braço dado com o improviso que, via de regra, leva incertezas ao “set”, mas cujo resultado aparece na tela cheio de viço e a sensação de que o inesperado se impôs. Karam logo entendeu o espírito do estilo e era parceiro  nessa.

Como não se roda na ordem encadeada de como o espectador vê o filme montado, a pérola com Karam ocorreu num dos seus ambientes cenográficos, o bar do “Flórida Hotel” (anagrama de Adolfo Hitler, et pour cause…), sequência essa quase no epílogo da trama. Reunidos na locação, mobiliada com poltronas e mesinhas, vemos Frau Lotte (Miriam Pires, 1927-2004), que joga “paciência”; o casal Eurico (Carlos Vereza) e Gudrun (Selma Egrei), ele, caixeiro viajante e mentor do hotel; ela, mulher dele; professor Ross (Sérgio Hingst, 1924-2004), marido de Lotte, Inge (Elizabeth Destefanis), Werner (Lauro Hanke), ambos filhos da matriarca, quando esse último comunica a Eurico a razão de estarem hospedando ex-nazistas no estabelecimento.

A cena se passa no ainda hoje, quarenta anos depois desativado por impasse jurídico, charmoso Hotel Johnscher, sito no centro de Curitiba, onde recepção, quartos de hóspedes, salões de refeições, cozinha, escadarias e corredores eram conservados em perfeito estado. Um achado, como se fora obra de refinados diretores de arte e cenógrafos especializados nas décadas de 1930, 40 e 1950.

 

Luz, câmara, ação

Estávamos preparando para filmar a primeira cena com o ator, Carlos Vereza, então uma das estrelas da novela “Selva de Pedra” (1972) da Rede Globo, cujo êxito continuava a refulgir nele. Chegara a Curitiba no dia anterior, cercado de expectativas pelo elenco local, engajado que fora pessoalmente por mim no Rio de Janeiro.

Nas conversas preliminares que tivemos com o roteiro à mão, pressenti que Vereza não só compreendera a ambiguidade do personagem, como tinha os diálogos na ponta da língua.

Trabalhando o enquadramento da cena com o mestre fotógrafo José Medeiros (1921-1990), que armava a luz conforme meu desejo, a fim de coincidir o movimento lento do “travelling” em ângulo que abarcasse todos os personagens, dei ordem de “luz, câmara, ação!” Como Eurico era o centro da atenção, constatei uma lentidão dele ao erguer o copo para beber antes da fala, o que me obrigou a repetir a tomada duas vezes.

Era flagrante um “timing” que, além de me confundir, destoava do clima psicológico da trama, um dos momentos clave do filme. Como gosto de dirigir à base de cochichos (jamais levantei a voz para ator ou técnico durante uma filmagem!), soltei “corta” e fui novamente ao Vereza na tentativa de “acelerar” o movimento do gesto, ainda que intuísse que estava sendo testado por ele. É comum esse embate de poder entre diretor e ator! Ele anuiu. Pensei comigo: quem sabe no terceiro, quarto “take”, ele acaba introjetando a necessidade rítmica da cena.

Foi quando, sinuosamente, Karam se aproximou, roteiro aberto nas mãos, e naquele seu jeitão de gozador, sussurrou cheio de sarcasmo: “Sylvio, será que ele pensa que é o Marlon Brando? (Karam sabia da minha paixão pelo maior ator de cinema de todos os tempos!). Ele é o Vereza, o nosso “Eurico” imaginado, é o que nos queremos dele, nada mais. Acho que esqueceu que você o escolheu porque tem o “physique du role” do personagem e é um cara de muito talento! Depois, a produção tem grana pra contratar Marlon Brando, tem?”

Demos uma gargalhada daquelas em uníssono, deixando perplexos equipe e elenco. E com manha e palavras suaves voltei ao Vereza, que  logo entendeu, e assim logrei desterrar aquele “Marlon Brando” fake que se insinuava entre ele e a lente da câmara, afinal, no meu filme! A prova é que a soberba interpretação de Carlos Vereza em “Aleluia, Gretchen” resiste ao tempo, tal qual a obra do genial Manuel Carlos Karam!  

– Sylvio Back, cineasta, poeta, roteirista e escritor

 

ALELUIA, GRETCHEN - Filmagem com Karam

A legenda da fotografia de Sérgio Sade, por Sylvio Back:

Filmagem da ceia de Natal, novembro de 1975, Curitiba (PR), onde vemos da esquerda para a direita os seguintes intérpretes e técnicos:

– sentados à mesa: Joel de Oliveira, Edson D´Ávila e Sérgio Hingst;

– em pé atrás: Lala Schneider e Kate Hansen, Luis Gonzaga (continuísta), José Assis Dutra (assistente de câmara);

– ao fundo: à câmara, o diretor de fotografia, José Medeiros com Miriam Pires à sua frente; Jorge da Silva (maquinista); ao lado dele, Manoel Carlos Karam e Back;

– sentados à mesa: Selma Egrei, Carlos Vereza, Elizabeth Destefanis e José Maria Santos.